Tactear o transitório. Ser fulguração. Sentir o esgar da revolta, da ironia, do espanto...

.
.
.
.
.
.
.
Isto assim
.
.
Era assim que se sabia. Não a escrever. Nem a pensar nisso. O círculo estava fechado. Não havia como entrar. O dia seguinte anunciou a passagem. Do que foi para o que se seguiria. Uma linha a tracejado.
.
Não se sabe para onde virar os olhos quando só a angústia é pura. A cama às mãos atada. Uma laranja sobre o tabuleiro da cozinha quase desequilibra uma paisagem. Nos quartos interditos as mãos vão encerradas nos bolsos. A beleza é um perigo, algo nefasto que conduz ao delírio . Tudo o que está a mais dói. Sobretudo dói o doer da navalha. Chegar e não encontrar nada. Unicamente as coisas nos lugares exactos. Não há um sopro dentro da casa. Há uma coisa que se perdeu por descuido. Não vale de nada correr para nenhum lado. Entretanto o medo atravessa lentamente a sala. No meio o interior de tudo. À contra luz a pele fica anulada, projecta sombras, no branco das paredes. As paredes suspendem esta casa como a cabeça agarra um corpo. Um truque de mágica.
.
Ficar por aqui eternamente mudo, é um destino. O mar bate muito ao longe. Todas as coisas foram feitas para serem desmembradas e depois reconstruídas. Entra aqui o artista com as suas mãos de prata. De natural tudo nos falta. Uma máquina empina-se e larga uivos. O artificial é um logro, um produto imaginativo. Somos feitos de um pó que deixou de ser feito. Entretanto perdeu-se a palavra. Isto assim. Mais vale escapar para o lugar onde não seremos vistos. A traição que nos agarra pelas costas. A alegria breve. O que ficou por dizer. Os dias felizes. Isto assim.
.
Pedro Paixão
.
15 Março 2007

12 comentários:

me said...

tristemente, de toda a obra e de toda a presença de pedro paixão, tem preponderância uma frase (uma das mais irónicas que me foi dita) que ele me atirou: "você parece um anjo".
é o que dá quando se está sobre um fundo formado por uma parede de corticite.

Anonymous said...

há uma desalegria, um desamor, um desconsolo na 'prosia' do pedro que nos deixa feridas no peito.
talvez por ser o espelho articulado de tanta coisa que, em nós, é 'apenas' silêncio que grita (e ninguém ouve).
gosto.
saudações.
gi.

St. J. said...

Fica sempre tanto por dizer...

Maria Strüder said...

As paredes seguram um corpo mas as "infiltrações" o podem desmoronar!

Anonymous said...

"Entretanto perdeu-se a palavra."

Excelente a escolha deste texto, apesar de ser... pessimista?

Abssinto said...

Digo sempre as mesmas razões que em fazem devorar os livros do PP. Hoje fico-me pela mais banal: o meu escritor preferido.

*

Anonymous said...

o vídeo acima e este post fizeram rolar as lágrimas no meu rosto. a chorar, não consigo escrever mais nada... obrigada pela purificação *

Citadino Kane said...

Imiscíveis o sonho e a vida, separados do mundo, este insiste em esvair-se com a vida pelo ralo do banheiro...

Letras de Babel said...

me - "a aparência duma coisa boa basta-me, por vezes."
(acho que sabes quem disse isto...)

o pedro paixão também não disse que eras um anjo. só parecias. e pareceu bastar-lhe para to dizer.
ir para além da absorvência da corticite ("eu sou esponjoso...") tirar-lhe-ia o rompante?

gi - muito antes de eu andar nisto de ter blog e ler blogs, disseram-me para ir ver o blog de alguém que apenas conheciamos como um nick num chat room e que tinha morrido dias antes e cedo demais. lá lia-se como sua descrição: "...diziam-me para ouvir os outros...mas os outros nada diziam."
lembrei-me disto quando disseste "silêncio que grita (e ninguém ouve)."

st. j. - lá dizia o torquato da luz:
"o que fica por dizer
é sempre mais do que se diz."

maria - as paredes também têm qualquer coisa que se chama alma e que não sabemos o que é - como não sabemos o que é a nossa. ambas nos seguram a matéria.
e tudo é desmoronável.

david - lá me fizeste rir por via da pergunta :)
(há palavras que não se perdem).

abssinto - já nos tinhas mostrado que o pedro era o teu number one...
good taste.

alice - há momentos em que as palavras estão a mais se fora de nós. tu sabes...

pedro - por "este" querias dizer o sonho ou o mundo?
seja o que for fica a faltar, sendo parte dum todo.
fica um frio...
já agora, como quando, inadvertidamente, destapamos o ralo do banheiro e a água se vai e só damos por isso quando vem o arrepio...

___________________________________

beijos

que

é sempre a mesma palavra mas sempre verdade.

Anonymous said...

o artificial é mesmo. um logro.



______________


um novelo. de beijos.



(puro instinto)

gi said...

sem palavras.
às vezes, ficamos assim.
assim fiquei ao ler o que escreveste acima..
com ternura,
gi.

Letras de Babel said...

...e o espanto do real também o ser, isabel.


gosto de sensibilidades assim, que se dizem, gi.
obrigada.

_____________________________


a minha ternura para os dois.

My Blog List