Tactear o transitório. Ser fulguração. Sentir o esgar da revolta, da ironia, do espanto...

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Equívoco - Ex-citação 2
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Toquei à campainha (...) e abriu-me a porta
alguém que não tinha nascido para abrir portas...
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in Diário de Andrés Fava - Júlio Cortázar
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21 Março 2005

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Recado post umo
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Conheciam-se por se verem quase todos os dias como se vêm quase todos os dias as pessoas duma vila pequena como era aquela. Um dia ele atreveu-se, num bailarico qualquer. Docemente, sem aquele gesto grosseiro de cabeça, feito das laterais, para as filas de cadeiras onde as raparigas se faziam muitas vezes acompanhar pelas mães "Queres dançar?". Não, ele foi pedindo licença às pessoas até estar à frente dela "Posso falar contigo?". Ela não disse nada. Levantou-se e encaminhou-se para a pista de dança. De repente, ela que nunca tinha querido dançar em bailaricos, quis falar com ele a dançar.
"Sou o Quim Zé, como deves saber, e quero convidar-te para saíres comigo no próximo domingo à tarde". Sair domingo à tarde, naquele tempo, era passsear pela avenida da vila, depois do almoço, horas contadas a partir de casa, voltar muito antes de cair a noite e sem angústias porque as conversas eram entendidas em cada segundo de silêncio, quebrado apenas pelo coro de folhas em fundo, e porque tudo podia ser repetido em qualquer altura como se se vivesse na mesma casa.
O Quim Zé tinha vinte anos, ela dezoito.
O Quim Zé disse a uma vizinha "É com ela que quero casar". Ela dizia às amigas que ele era lindo, com aqueles cabelos loiros e olhos tão verdes e tão líquidos...mas que não era dele que ela gostava.
Semanas depois ele deu entrada num hospital onde, curiosamente, tinham descoberto ter estado os dois quando eram crianças, sem saberem um do outro nessa altura. Nada de grave, era coisa para poucos dias, mas perguntou-lhe se lhe podia escrever. Que sim, porque não?, respondeu ela tão naturalmente como conseguiu, posto que continuava deslumbrada por aqueles olhos verdes e por tanta atenção. Não era amor, mas havia qualquer coisa que lhe tolhia a espontaniedade e às vezes a alegria, quando passeava com ele avenida abaixo, avenida acima. Sem sequer nunca terem dado a mão nem terem falado em namoro. Naquela altura as vizinhas, os amigos ou os familiares serviam como fiéis depositários das esperanças de cada um.
Ele escreveu-lhe. Ela não respondeu.
Quando saíu do hospital ele começou um namoro com uma rapariga duma terra vizinha, que nunca se soube quem era. O que se soube foi que casaram logo de seguida e que, algum tempo depois, ele morreu num desastre de automóvel, embatendo violentamente num contentor de lixo e num poste eléctrico, numa curva estupidamente fácil.
Ela ficou triste. Teve pena de saber aqueles olhos verdes fechados para sempre. Mas foi só. Estava imbecilmente obcecada por alguém de quem nem reteve o nome, nem com quem alguma vez sequer falou e que nunca lhe deu atenção alguma. Apenas por o ver passar na rua.
Ficou triste e nunca conseguiu saber porque lhe tinha tocado o líquido daqueles olhos verdes. Na verdade nunca sequer se esforçou muito. O outro continuava a passar frente à janela dela. E o tempo a passar com ele e tudo o resto...
Mas ficou toda a vida com um aperto no peito de cada vez que se lembrava do que, mais tarde, a vizinha lhe disse, com ar sério, de lamento e algo reprovador "Se tu tivesses querido casar com ele...". Poderia o Quim Zé ainda estar vivo, queria ela dizer.
A vizinha não sabia que o destino dela seria chorar os vivos. E muito.
E apenas sorrir, agradecida e ternamente, para todos os mortos da sua vida.

Quim Zé, ela pediu-me para te dar um recado."Diz-lhe até um dia. E que a avenida continua igual, clara e limpa, como se fosse um cemitério de coisas bonitas."
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19 Março 2005

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O que ando a ler - Ex-citação 1
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POEMA DE AMOR

1.
Tu és a minha aranha favorita

2.
Não sabem quanto eu gosto
de me sentir em palpos de aranha.


outro

POEMA DE AMOR

Esta noite sonhei oferecer-te o anel de saturno
e quase ia morrendo com o receio de que não
te coubesse no dedo

e ainda

CARTA DE AMOR

Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de costume)
a medir o tesão das flores
ali no Jardim de S. Lázaro
um tiro de pistola e...
Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto
Podes invocar Safo, Cavafy ou S. João da Cruz
todos os poetas celestiais
que ninguém te virá acudir
Comprometidos definitivamente os teus planos de eternidade
Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão
Um dia destes vou-te matar...
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração

e

o que considero o mais belo poema de amor feito a Portugal


PORTUGAL

Portugal
Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir
como se tivesse oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater
os infiéis ao norte de África
só porque não podia combater a doença
que lhe atacava os orgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo mentira,
que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer
que nos espera um futuro de rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos
a ver se contraía a febre do Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso
sem lograr encontrar uma pétala que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Se tivesse dinheiro comprava um Império e dava-to
Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito
e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce
que os pastéis de Tentugal
e o corpo cheio de pontos negros
para eu poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete,
Salazar estava no poder, nada de ressentimentos
O meu irmão esteve na guerra,
tenho amigos que emigraram, nada de ressentimentos
Um dia bebi vinagre, nada de ressentimentos
Portugal
depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas
a nado na piscina municipal de Braga
ia agora propôr-te um projecto eminentemente nacional
Que fossemos todos a Ceuta
à procura do olho que Camões lá deixou
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca
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In O Poeta Nu - Jorge de Sousa Braga
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15 Março 2005

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Algemas
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"A vida são portas condenadas" - escreveu alguém (e que, aqui, arrumo, adapto e acrescento)

São portas que passamos.
E pensamos que ao abri-las descobrimos o mundo e arrumamos o caos interno.
Depois percebemos que elas se fecham uma a uma. Nas nossas costas. Na nossa cara.
Com uma força esmagadora que nos deixa de braços caídos a perguntar

Porquê?

São portas condenadas.
Primeiro fecha-se a da infância. Dos risos ao sol, das tardes a brincar, dos livros coloridos, dos colos, do beijo antes de adormecer.
Depois crescemos e alguém nos diz: tu és capaz, tu és capaz...

E ficamos por nossa conta.

A partir daqui tudo se estreita.
Percebemos que viver é apenas um precário equilíbrio. Uma travessia solitária. Que nos há-de levar a um lado qualquer que é sempre do outro lado.
Onde está tudo aquilo que nos convencem que queremos.
Que escolhemos como objectivo para alcançar uma coisa qualquer a que gostamos de chamar

Felicidade.
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Para além disto gostava de dizer que

Às vezes e através de ti, convenço-me que afinal a vida não são só portas condenadas.
Que através de ti alcanço momentos tão
Gratificantes
Deslumbrantes
Partilhados
Absolutos
que é como se todas as portas do mundo se abrissem.

Mas não posso.

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04 Março 2005

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