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Olhares no Fundo da Pele
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-Nunca mais caminhámos pelas ruas, nunca mais nos sentámos a olhar o azul do céu. Cansaço, indiferença?
-Apenas desejo que não te sintas presa.
-Eu quero sentir-me presa, conscientemente presa. Cair contigo, Leo.
-Umas vezes queres, outras vezes procuras a luz.
-Pensas então que eu...que perdemos a luz?
-Caminhávamos pelas ruas e o tempo não contava. Ainda te vejo, ainda te sinto transparente. Mas chegámos demasiado cedo à vida do outro.
-Tu é que falas em acabar, que tudo acaba, amor efémero e não sei que mais...
-Precisamos de novas ressonâncias, de ouvir cada um a sua música.
-Eu não preciso, Bach está bem.
-Queres dizer que ainda não precisas. Um dia destes farás amor comigo a pensar noutro.
-Um dia em que estejas a pensar noutra?
-Ou noutra coisa. No vazio.
-Não estás sempre? Essas figuras que tens na cabeça, esses palcos que tu pisas...
-O começo da tua libertação. A morte do casamento, Ema.
-Que já morreu para ti.
-Começou a morrer.
-Quando?
-No primeiro dia. O teu é imutável?
-Está de boa saúde, cheio de contradições mas...
-Vês? -Cheio de contradições, infidelidades, mas o desejo...
-O desejo? Sabemos onde tocar, sabemos quando o outro deseja, quando o outro se abre. A isso eu chamo hábito, conforto, um conforto -que pouco a pouco se tornou maduro. Como tu me desprezarias se eu te fosse fiel! Leal, sou leal.
-Dás-me vontade de rir.
-Ri. Gosto de te ver rir assim, com o copo na mão, a olhar o mundo com o copo na mão.
-O mundo, o mundo...Só devia ser olhado, só merece ser olhado com o olho do cu. Prefiro olhar para ti.
-Para mim? Estou feia.
-Chegou o momento de te conheceres, de te possuíres.
-Tu é que te perdeste. Às vezes olho-te e não te reconheço.
-Eu sei. Eu próprio me perco nos meus desertos. Jogo a mão, tenho a boca seca e é uma miragem. Ainda não encontrei o meu kibbutz.
-Tocas o que a mão não alcança.
-Alcanço-te ainda.
-Não gosto do ainda.
-Queres que me apodere do futuro, do que não existe?
-Eu não existo?
-Existes mas não tens olhos, não vês que estou a cair, a deslizar. Não vês o medo que eu tenho de ser tão incerto e deslizante e falso como tudo o resto. O amor é sempre uma forma de destruição.
-Quando começámos dizias que era uma forma de construção...
-Sabes qual é a diferença?
-Sei que me queres perder.
-Não se ama menos quem está ausente, quem se perdeu.
-Palavras. Tão vazias como o azul do céu, um buraco. Mas eu estou aqui, ainda estou aqui.
-Ainda, estamos ainda ligados um ao outro mas já não temos nada a construir.
-Eu tenho. Ajudas-me a despir o vestido?
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in Pátria Sensível : Romance
Casimiro de Brito
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13 Julho 2005