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Recado post umo
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Conheciam-se por se verem quase todos os dias como se vêm quase todos os dias as pessoas duma vila pequena como era aquela. Um dia ele atreveu-se, num bailarico qualquer. Docemente, sem aquele gesto grosseiro de cabeça, feito das laterais, para as filas de cadeiras onde as raparigas se faziam muitas vezes acompanhar pelas mães "Queres dançar?". Não, ele foi pedindo licença às pessoas até estar à frente dela "Posso falar contigo?". Ela não disse nada. Levantou-se e encaminhou-se para a pista de dança. De repente, ela que nunca tinha querido dançar em bailaricos, quis falar com ele a dançar.
"Sou o Quim Zé, como deves saber, e quero convidar-te para saíres comigo no próximo domingo à tarde". Sair domingo à tarde, naquele tempo, era passsear pela avenida da vila, depois do almoço, horas contadas a partir de casa, voltar muito antes de cair a noite e sem angústias porque as conversas eram entendidas em cada segundo de silêncio, quebrado apenas pelo coro de folhas em fundo, e porque tudo podia ser repetido em qualquer altura como se se vivesse na mesma casa.
O Quim Zé tinha vinte anos, ela dezoito.
O Quim Zé disse a uma vizinha "É com ela que quero casar". Ela dizia às amigas que ele era lindo, com aqueles cabelos loiros e olhos tão verdes e tão líquidos...mas que não era dele que ela gostava.
Semanas depois ele deu entrada num hospital onde, curiosamente, tinham descoberto ter estado os dois quando eram crianças, sem saberem um do outro nessa altura. Nada de grave, era coisa para poucos dias, mas perguntou-lhe se lhe podia escrever. Que sim, porque não?, respondeu ela tão naturalmente como conseguiu, posto que continuava deslumbrada por aqueles olhos verdes e por tanta atenção. Não era amor, mas havia qualquer coisa que lhe tolhia a espontaniedade e às vezes a alegria, quando passeava com ele avenida abaixo, avenida acima. Sem sequer nunca terem dado a mão nem terem falado em namoro. Naquela altura as vizinhas, os amigos ou os familiares serviam como fiéis depositários das esperanças de cada um.
Ele escreveu-lhe. Ela não respondeu.
Quando saíu do hospital ele começou um namoro com uma rapariga duma terra vizinha, que nunca se soube quem era. O que se soube foi que casaram logo de seguida e que, algum tempo depois, ele morreu num desastre de automóvel, embatendo violentamente num contentor de lixo e num poste eléctrico, numa curva estupidamente fácil.
Ela ficou triste. Teve pena de saber aqueles olhos verdes fechados para sempre. Mas foi só. Estava imbecilmente obcecada por alguém de quem nem reteve o nome, nem com quem alguma vez sequer falou e que nunca lhe deu atenção alguma. Apenas por o ver passar na rua.
Ficou triste e nunca conseguiu saber porque lhe tinha tocado o líquido daqueles olhos verdes. Na verdade nunca sequer se esforçou muito. O outro continuava a passar frente à janela dela. E o tempo a passar com ele e tudo o resto...
Mas ficou toda a vida com um aperto no peito de cada vez que se lembrava do que, mais tarde, a vizinha lhe disse, com ar sério, de lamento e algo reprovador "Se tu tivesses querido casar com ele...". Poderia o Quim Zé ainda estar vivo, queria ela dizer.
A vizinha não sabia que o destino dela seria chorar os vivos. E muito.
E apenas sorrir, agradecida e ternamente, para todos os mortos da sua vida.
Quim Zé, ela pediu-me para te dar um recado."Diz-lhe até um dia. E que a avenida continua igual, clara e limpa, como se fosse um cemitério de coisas bonitas."
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19 Março 2005