Tactear o transitório. Ser fulguração. Sentir o esgar da revolta, da ironia, do espanto...

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Rascunho de uma vida
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A vida é como um pequeno saco de pistácios. Plástico que esconde segredos contados um por um com a certeza de que serão tantos como os que se pensam. Cada um salgado. Cada um com uma casca que engana a face que se esconde. Há sempre um que se apresenta nu nas mãos de quem o cobiça. Outro fecha-se de tal maneira que é preciso estragar as unhas para trincar o prazer. Os restantes são meros pistácios iguais a todos os que aguardam noutros tantos sacos. Mas todos com um destino. Há sempre um destino. Para todos. No final há que limpar o suor. Beber um pouco de água ou cerveja. Ao gosto de cada um. E no final suspirar.

A vida é estranha. Parece que há um prazer em saber que nos pertence. Que por vezes vem e vai. Há momentos em que se apregoa por dias melhores. Que os que se vivem acabem num suspiro. Como se o último pistácio fosse o que guarda um duelo entre a vontade e a paciência. Há alturas em que os dias são passados a praguejar. Mas há os que olham o céu e simplesmente acreditam. Há os que se amam. Os que se odeiam. Os que dão a vida ou tiram vida. E há os que nos morrem. Ou os que nos escolhem para morrer. E tudo fica para trás. Escondido e sem sentido. Todos choram, como se a cidade parasse. Como se o mundo se afundasse. Como se esse fosse o último de todos. Mas os aviões continuam a brincar no céu. Os carros a rosnar na estrada. Miúdos a gozar com as rugas que um dia vão ter. Até que um dia são eles.


E o tempo continua. Com vozes aqui e ali. Ninguém se cala. Chora-se. Até que seque a última lágrima. E, da memória do último de todos, fica apenas uma pedra com o nome que é e sem a vida que teve. E sonha-se em ser o outro. Os outros. Para viver o que ainda lhes está destinado. Vive-se a sonhar. Morre-se como se de um sonho ensonado se tratasse a vida.
«Às vezes julgo ver nos meus olhos a promessa de outros seres que eu podia ter sido, se a vida tivesse sido outra. Mas dessa fabulosa descoberta só me vem o terror e a mágoa de me sentir sem forma, vaga e incerta como a água.» escreve Sophia de Mello Breyner Andresen, na década de 40, num papel que passa a poesia, uma linha que esconde o desejo. Maldito por vezes. Porque a vida nasce assim, sem sentido. E quando o ganha, deseja-se que perca. E que se regresse à infância. Que o amor seja tão grande como os sonhos dos pequenos. De mundos que se criam do tamanho do Universo. Tão grandes. E é a vida que a par e passo abre caminhos traiçoeiros, amenos, ventosos e tempestuosos, calmos e brandos. Parece que cada um é feito à medida de todos. E de ninguém. Como o tempo de que todos falam quando nada há a dizer.

Cumprimenta-se a vida. Despedem-se os amantes. Como escreveu Li Shang-yin, algures num recanto onde a chuva alimenta a Primavera, «São tão difíceis os encontros, mas mais difícil é a separação». No século IX, o poeta que viveu durante a dinastia Tang, escreveu que «Um punhado de amor é um punhado de cinzas». Quando acaba, realmente, pode ser a coisa mais triste do mundo, canta-se em brasileiro. Mas sem sotaque, porque esta é bem capaz de ser uma verdade universal.

E ser-se quem se é será sempre assim. Para nascer, viver, amar e morrer. Chora-se. A vida é uma loucura consciente. Uma viagem sem regresso. Quando o fim nos escolhe não há retorno. E somos as cinzas. Como o amor que tivemos por ela. Mesmo que por um dia. Ou em toda a vida.
Nascemos sem a consciência do que nos espera. Morremos da mesma maneira. Pelo meio, na verdade, nada nos espera. O fogo que nos acenderam cedo tem um fim. Mas nunca um sentido. Esse procura-se todos os dias. E espera-se. Sempre.

«Acendi uma fogueira nas minhas noites de lua para chamar os hóspedes como fazem as prostitutas à beira de certas estradas, mas ninguém parou para ver. E a minha fogueira apagou-se» escreve Alda Merini, poetisa italiana, depois de anos passados em paredes de loucos, sobre a espera. Loucura. Amor.«Quando nos amávamos davam-nos choques eléctricos porque, diziam, um louco não pode amar ninguém».
Reside a esperança de uma ressurreição. Que os males se apaguem. Apesar do amor não se circunscrever à normalidade. É vida quando corre nas veias de quem ama. Seja são ou pérfido. «A doença também tem um sentido, uma desmesura, um passo, a doença também é matriz». Vive-se entre a dor e o sorriso. E a incerteza constante. Como se a felicidade fosse ouro no final de um arco-íris. Como se os males se escondessem por debaixo de árvores de solidão, árvores de luto. E chora-se. Muito. Quando tudo chega ao fim.

A vida, na verdade, é como um pequeno saco de pistácios. Há uns tantos que nos dão prazer. Outros alguma luta. Aqueles em que insistir significa a nossa degradação. Mesmo que sejam unhas, quando somos nós, é a alma que se estraga. Há os podres. E os que sobram. Seja um saco ou não, nunca irá fazer sentido. Mesmo tirando a casca, do princípio ao fim, é apenas uma viagem sem memória.

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01 Maio 2005

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