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Entrevista a Alberto Caeiro, por um heterónimo de Pessoa
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H. D. - Se não achasse inconveniente, perguntar-lhe-ia se as coisas que o senhor vê são as coisas reais ou, por outros termos, se são exactamente tal como as vê ou são uma projecção da sua percepção visual?A. C. - O senhor é um pensador que pretende ser visionário e por isso não vê o que vê.
H. D. - Confesso que me surpreende a sua visão da realidade, para a qual tudo é simples em vez de complexo. Não será uma simples pedra tão complexa como um astro ou uma formiga como um elefante?
A. C. - O senhor pensa e para si pensar é relacionar, mas cada coisa em si mesma é o que é, incomparável, e não é outra coisa porque se o fosse já não seria nada e, sem ser o que é, não poderia vê-la nem poderia pensá-la.
H. D. - Então para si o real é o que é e nada mais. Dir-se-ia que para o senhor nada tem uma interioridade que não se vê mas que transcende a sua aparência.
A. C. - Eu creio sobretudo no que sinto ou seja sou alguém que é mais receptivo do que imaginativo. Será a aparência de uma coisa real do que os filósofos chamam a sua essência?
H. D. - Mas o senhor pensa e diz que não é um pensador. Não acha que se contradiz?
A. C. - O que penso são pensamentos e nada mais impreciso do que um pensamento. Por isso eu não acredito nos pensamentos que se sobrepõem à minha visão. Se penso é porque tenho de pensar como um doente tem de sofrer porque é doente. Mas eu vivo e sinto mais do que penso e se penso é como um céptico que brinca com o que pensa, porque nenhum pensamento deve ser tomado a sério se quisermos viver a vida como se fosse um espaço aberto sem as interposições e interferências que imaginamos, pensamos ou julgamos sentir.
H. D. - Então o senhor nem sequer acredita no que sente?
A. C. - Eu não acredito, eu sinto o que sinto e não tento saber se o que sinto é o que sinto ou não, porque o sinto.
H. D. - Se o senhor não interroga a realidade nem duvida de si próprio, então é mais do que um sábio.
A. C. - Não, eu sou um homem simples porque tudo é o que é e não separa o que é de si mesmo porque é o que é.
H. D. - Não será o senhor um filósofo das evidências que são tão evidências que são óbvias?
A. C. - Mas é a própria realidade que, tal como é, é inalterável. Eu não posso separá-la. A sua evidência é a evidência de si própria e eu não quero ir além do que ela é porque o que ela é o que ela é.
H. D. - Então para si pensar não é um acto de consciência mas a pura recepção do que é tal como é e nada mais do que é.
A. C. - Sim, o que diz é verdade ou uma aproximação da verdade. Eu digo que é uma aproximação porque não sei o que é a verdade ou sei que a verdade não é a verdade, uma vez que ela é invisível, embora para mim isso seja um problema, precisamente porque a verdade é o mais complexo de todos os problemas e eu não posso perder tempo com problemas irresolúveis, porque são irresolúveis. Para mim a verdadeira verdade é a verdade que não preciso compreender, porque é a mais simples, ou a evidência mais evidente.
H. D. - Então, como se considera o senhor que é também um poeta mas como poeta também é filósofo?
A. C. - Eu não distingo poeta do pensador. Se escrevo é porque não distingo o que vejo penso ou sinto do que é - quando penso vejo ou sinto o que não estou a pensar - por isso é que pensar é um outro modo de ver o real porque eu penso como quem vê sem pensar. E como se o pensamento se libertasse de si próprio e simultaneamente me libertasse dele deixando-me ver, o que estou a ver. Eu não quero ir além do que me é dado e o que a realidade me oferece é ela mesma. (Ela não tem necessidade de me explicar que é ela mesma e não outra coisa).
H. D. - Em síntese, eu poderia dizer que o senhor está no mundo como uma amiba na água e, por conseguinte, para si não há problemas.
A. C. - Há o que há e só o que há.
H. D. - É um homem feliz.
A. C. - Não, se eu fosse feliz não saberia o que era a felicidade e já não seria feliz. Por isso, prefiro dizer que sou o que sou e isso me basta para me sentir no mundo como quem está no mundo e não deseja mais nada.
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Transcrição de António Ramos Rosa
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25 Janeiro 2007
3 comentários:
(genial.....)
Fogo!!! fogo mesmo!
Esclarecidos?
:)
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