Tactear o transitório. Ser fulguração. Sentir o esgar da revolta, da ironia, do espanto...

.
.
.
.
.
.
.
Uma conversa
.
.
A - Bom dia.
B - Bom dia.
A - Procuro uma cama.
B - Tenho muitas, mas nenhuma como a que o senhor procura.
A - Como sabe?
B - Porque todas estas camas são minhas; portanto, é impossível que, entre elas, esteja a que procura.
A - Mas a cama que procuro não é minha.
B - Está, portanto, a fazer um favor a um amigo...
A - Não...o senhor não compreendeu...eu procuro uma cama para comprar...pensei que o sr. tivesse camas para vender...
B - E tenho...todas as que vê aqui são para vender...
A - Então não são suas?
B - Exactamente...por isso mesmo é que as vendo.
A - Já percebi...não gosta delas...
B - Pelo contrário - gosto até bastante delas!
A - Não percebo então porque as vende...
B - Ora essa! Elas são o meu ganha pão!
A - Então diga-me quantas carcaças custa aquela ali, de mogno.
B - Desculpe, mas o pagamento terá de ser feito em dinheiro.
A - Estou a ver...depois, com o dinheiro é que o sr. vai comprar o pão.
B - E o resto, claro!...
A - Ah! Também há resto!...
B - É evidente! Já a minha avó me dizia: «Nem só de pão vive o homem».
A - De acordo. Mas diga-me, por favor, que tipo de camas tem para venda?
B - Tenho de tudo um pouco.
A - E camas inteiras não tem?
B - Claro que tenho! Que tipo de cama desejava?
A - Olhe, para lhe ser franco, qualquer uma me servia...essa, por exemplo, é cómoda?
B - De modo nenhum: essa aí é uma cama. Cómodas também tenho, ali ao fundo do salão, ao lado dos psichés.
A - Não, não...se é cómoda, quero dizer: se confere comodidade ao seu utente?
B - Desculpe, mas utentes não tenho. Pensa que sou algum laranja?
A - De facto, a sua côr é mais a atirar pró vermelho...
B - Não misture políticas com camas, por favor...
A - Não seria a primeira vez...já se tem feito...
B - Pois aqui, no meu estabelecimento, não!
A - Bom...então embrulhe-me 250 gramas de nozes.
B - Não quer também alguns amendoins para o caminho?
A - Condescendo - levo dois.
B - Afinal, não se perdeu tudo...
A - É o que a agricultura tem de bom - aproveita-se tudo...

in PcM, Junho/83
.
10 Agosto 2006

1 comentários:

Anonymous said...

Achei genial =)
Gosto mt do blog (estou a lê-lo aos pouquinhos =)**

My Blog List